“…Tudo que aos olhos se interpõe,
É um sonho dentro de um sonho…”
Edgar Allan Poe
As cidades, assim como toda urbe, são emaranhados de vivências, aspectos únicos, subjetivos, e ao mesmo tempo coletivos de uma cultura organizacional que de sincronicamente, erige e desconstrói. Indivíduos em seus recortes pessoais são retratados em carne e osso, bem como em celuloide; uma matéria-prima extremamente rica e mutante, até mesmo, poder-se-ia asseverar, metamorfosicamente ambulante, não raro, estática. A partir de cores, elucubrações anímicas, relatos e sentimentos, as metrópoles de forma global e alinhando várias tessituras, desenham contornos não apenas de edificações materiais, mas também a solidez de trilhas individuais, as quais, ulteriormente e finalisticamente, compõem o coletivo, ao mesmo tempo anônimo e vivaz, cosmopolita e em cotejo a significação emotiva.
O mesmo pode ser dito acerca dos apartamentos, prédios, casas, estruturas que encapsulam a célula subjetiva como peça anônima e coadjuvante da alegoria principal. Nesse espaço, as habitações coletivas são recorrentemente tratadas como plano de fundo das representações artísticas, mormente na literatura e cinema, ou numa junção adaptativa de ambos. A chamada Trilogia dos Apartamentos, do diretor polonês Roman Polanski, trabalha esses aspectos de forma robusta e sofisticada ao amalgamar o drama psicológico humano às feições do sobrenatural, ora de forma velada, ora de maneira (quase) explícita.
A proposição temática que se envereda, é deflagrada pelo título ‘Repulsa ao sexo’, (Repulsion,1965), pelo qual o reduzido número de personagens canaliza o suspense na grande performance de Catherine Deneuve, que de forma gradual, vai cruzando os umbrais da Insânia, ou assim parece ao espectador, entregue a suas divagações oníricas. Na trama, escrita por Polanski e Gérard Brach, acompanhamos a Carole Ledoux, mulher retraída e atormentada que, quando deixada sozinha no apartamento que divide com a irmã, inicia uma escalada paranoica permeada por pesadelos e alucinações no momento em que a personagem entra em contato com os homens e é confrontada por seus desejos a ela canalizados.
Vislumbra-se uma abordagem indireta sobre transtorno de aversão sexual, representado pela rejeição patológica e persistente a todo tipo de contato genital. O estado mental de Carol e sua deterioração é intensificada e, talvez, adornada, por sua reclusão nas dependências do apartamento, que pode ser até mesmo interpretado como um catalisador da figura masculina em seu inconsciente, num misto de terror psicológico e suspense. À sombra desse tópico, interessante diferenciar do ponto de vista analítico as definições de suspense e horror. Ainda que usualmente aludidos como sinônimos, no entanto, o terror se assimila de forma premente ao medo e angústia não aparente, psicológica. Lado outro, o horror exsurge de contornos mais explícitos, que causam asco e repulsa. Ao mesmo tempo em que um denota o lado psicológico, o outro suscita a surpresa e efeito mais gráfico e visual.
No título ‘O bebê de Rosemary’, (Rosemary´s Baby, 1967), seu grande sucesso em terras estadunidenses, adaptado do livro homônimo de Ira Levin, conhecemos a história de Rosemary Woodhouse, esposa de um ator decadente e frustrado que se vê habitando um disputado prédio novaiorquino, com locações gravadas no Edifício Dakota, onde ocorreu o assassino John Lennon. Nesse passo, desde que trava conhecimento com seus novos vizinhos, o aparente simpático casal de idosos interpretados por Sidney Blackmer e Ruth Gordon, em meio à sua própria solidão imposta, estranhos desdobramentos fazem com que seja semeada a suspeita de seu envolvimento com o ocultismo. O filme, desde os primórdios de sua realização, foi nutrido com um olhar especial pela produtora cinematográfica Paramount.
Projeto com direção originalmente delegada a Willian Castle, que em momento posterior ficou a cargo da produção, pois oriundo de um nicho substancial de produções baratas de terror, o estúdio não queria que a obra fosse, de plano, rotulada como mais uma película rasa como as que inundavam os cinemas no período. Rosemary, a partir de pontos distribuídos no decorrer da película, suspeita de que os engajamentos satânicos de seus confrontantes objetivam utilizar seu rebento iminente, em oferenda ao diabo. Seria realmente um conciliábulo de bruxas em pleno século XX, no qual ela foi inserida como coadjuvante e vítima, ou projeções oriundas de suas próprias fantasias incentivadas por uma crise existencial? Mais perguntas são entrecortadas por induções, do que resposta são ofertadas durante as duas horas de duração.
Nos anos 70, após a realização de outro grande sucesso de público e crítica, o Noir ‘Chinatown’, estrelado por Jack Nicholson e roteirizado pelo lendário Robert Towne, o diretor teria problemas com a justiça americana, fazendo com que tivesse que fugir do país para evadir-se a processo um processo criminal, devido ao envolvimento sexual com uma menor de idade. Polanski já havia também assimilado holofotes por outro drama pessoal ocorrido em 1969, com o assassinato de sua então esposa grávida, a atriz Sharon Tate pelos discípulos de Charles Manson. A posterior produção do realizador seria voltada ao velho continente, retornando ao ponto de partida de sua carreira, no entanto, não em tom de retrocesso. O filme ‘O inquilino’, (Le Locataire/The Tenant, 1976), novamente explorando a multitude de relações humanas em um prédio de apartamentos, alinha a história do pacato Trelkovsky, interpretado pelo próprio de Polanski, que a despeito de sua atuação em expressões contínuas e poucos versáteis, traz credibilidade ao personagem que acredita vítima de uma conspiração pelos demais moradores do prédio, de modo similar a anterior ocupante de seu apartamento, que teria se atirado pela janela. Aqui, tal como amoldado em Rosemary e Repulsa, a carga de tensão é construída não pelo que é mostrado, mas repousa naquilo que é presumido ou deduzido a partir de sugestões que podem ou não ser entendidas como tal, lastreando progressivamente o sustentáculo ao clímax derradeiro.
A obsessão do Inquilino Trelkovsky pela mulher, ocupante anterior de sua escabrosa morada e a certeza da conspiração contra sua higidez, repise-se, física e mental, culmina em sua alucinada entoação acusatória “Eles querem me transformar em Simone Choule!”. Esses aspectos desvelam um tecido construído de maneira mais minuciosa e robusta a partir de elementos contínuos constantes do roteiro. Planos sequência a partir da visão dos personagens e suas fantasias baseadas em elementos empíricos ou imaginários, constroem uma narrativa extremamente eficaz em todos os filmes, que guardam peculiaridades no aspecto de construção da tensão e medo incutido ou projetado pelos protagonistas. Matizes de ambientes bem como alternância psicológica dos personagens ajudam a compor as diversas camadas que esmeram a densidade dos roteiros.
É sabido que, quando se fala em arte (ou se sente), a noção de relativismo histórico antropológico exsurge de maneira bem forte, seja num olhar individual ou amplificado, pois, assim como a criação de uma obra pelo artista, sua interpretação inexoravelmente indica um troca. Uma miríade, na verdade. Congruentes ou incongruentes, similares ou de harmonia flagrantemente denegada, tal é a complexidade do ser humano sensível, que reage de maneiras distintas a eventos em comum. E, a partir desta visão multifacetada, a cada sessão, novas interpretações e emoções são detectadas, como impressões digitais, ou pegadas na areia.
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